sábado, 15 de janeiro de 2011

Dantes em mim

Era uma carta mas também era um sonho. E pelo que me lembro começava assim:

"Essa última noite tive que descer ao inferno. Fui avisado através de uma mensagem de texto que dizia que um certo anjo de asas escuras, sob a falsa alcunha de alfaiate, havia costurado juntas duas almas distintas, uma escarlate e outra cheia de pontas, numa bolsa de couro ordinário, do tipo que se compra nas feiras mais miseráveis. E era eu quem devia descer até lá, no abismo dos abismos, para por um fim àquela injustiça. Você, entretanto, não queria que eu fosse; me ligou de um orelhão¹ da rua e se usou de todas as chantagens melodramáticas de que dispunha para me tentar me demover dessa idéia absurda. Argumentei dizendo-lhe que o crochê de almas anacrônicas era um costume por demais funesto, e que o caso deveria ser averiguado o mais breve possível.

"Pois que afinal desci. Uma vez na cena do crime, pude ver de perto o estrago: os arremates da bolsa eram grosseiros e a linha, preta. Precisava levá-la comigo a todo custo. Mas as almas eram vagamente arredondadas e, por sorte, foi precisamente este fato que pesou ao meu favor quando entrei numa discussão acalorada com o senhor das profundezas, que por sinal não possuía chifres, fogo pelo corpo ou sequer um rabo pontudo do qual eu pudesse zombar. Me senti subitamente ultrajado pela idéia de estabelecer diálogo com um diabo que não fosse diabólico, e por isso dei-lhe as costas e abandonei-o falando sozinho, como que derrotado. Mas em segredo levava as almas comigo, no bolso da frente da calça, já que o de trás estava com um rasgo tremendo.

"Como o caminho que usei para descer, fosse qual fosse, a essa hora já deveria estar intransitável, decidi que o melhor a fazer era fugir clandestinamente na barca de Caronte, mas não sem antes oferecer-lhe um generoso suborno. Não senti remorso, pois já supunha que nos domínios do inferno nem mesmo o Barqueiro se salvaria da corrupção.

"Uma vez de volta, tratei de cuidar das pobres almas, cujo estado ainda era lastimável, mas não de todo. Já tinha visto coisas piores nessa vida, e sabia que um pouco de carinho e água oxigenada (mas não mercúrio) proporcionariam alguma melhora dentro de poucos dias.

"Já nas primeiras horas da manhã, quando por fim consegui deixar a UTI e voltar para casa, encontrei acesas as luzes da sala. Era você quem, ainda acordada, me aguardava envolta num roupão e tomando um chá já quase frio. E foi sem me dirigir qualquer palavra, ou mesmo qualquer repreensão, que veio até mim e me deu um beijo demorado na boca, repleto de lascívia e preocupação. Desfiz todos os seus temores e correspondi ao seu desejo, que a essa altura era nosso desejo: elogiei-lhe com docilidade e umas poucas palavras obscenas, uma habilidade que você sempre julgou atraente; e alguns minutos depois já lhe possuía a carne e o espírito, com o devido ardor, apesar do cansaço. Foi só quando já estávamos deitados e abraçados e medicados pelo cansaço que resolvi contar-lhe o que havia se passado no inferno, mais cedo, obviamente enfeitando algumas passagens, a fim de que estas não lhe parecessem demasiadamente prosaicas.

"E no rádio, Chris Martin quase lamentava: for you I bleed myself dry..."



1: deduzi isso pelo som dos carros passando.

2 comentários:

Juca disse...

"Yellow" sempre será uma fonte de inspiração bacaníssima.

Anônimo disse...

dEsse texto deve entrar naquele projeto de edição do seu primeiro livro, que poderemos chamar Yellow book. E, eu estou enganada, ou já tinha lido o último texto que vc publicou? A propósito, msm que isso não signifique grandes coisas: escreve muito esse meu namorado. Bjo, te amo!