segunda-feira, 29 de junho de 2009

A Jihad das magrelas

Quando o assunto é a infindável criação de deus, uma das primeiras lições que os seres humanos aprendem é que, inegavelmente, algumas coisas são como são. Mas somente algumas coisas, é claro.

Nem tudo é como deveria ser, e isso se torna bem claro quando, por exemplo, você é obrigado a percorrer longos trajetos sobre uma bicicleta. Uma coisa é andar a pé. "Andar com as próprias pernas", como se costuma dizer. Pode até parecer primitivo ou pouco eficaz, mas é acima de tudo um meio de locomoção seguro e universal. Mesmo as aves ou os peixes (ou ainda as minhocas), que não são bichos exatamente bípedes, são capazes de andar - à sua própria maneira, de fato, mas ainda assim podemos dizer que "andam" valendo-se de suas capacidades físicas.

Bom, se valer das próprias capacidades físicas não é o que uma pessoa faz quando anda de bicicleta, não unicamente. É necessário se valer também das capacidades físicas da bicicleta em si, e do asfalto, e dos buracos, e - para o total desespero - dos carros.

A relação entre carros e bicicletas é predatória. Sempre foi assim, desde o tempo das cavernas, e existem inclusive pinturas rupestres que evidenciam essa teoria: a de que logo pela manhã, quando os homo habilis saíam de suas cavernas para trabalhar, alguns enfrentavam o trânsito matinal utilizando seus carros, enquanto que outros, menos afortunados financeiramente, percorriam os mesmos trajetos munidos somente de bicicletas. Também nestas pinturas são retratadas batalhas terríveis, batalhas sobre como os carros acossavam as bicicletas com seus grandes corpos motorizados, e de como as bicicletas, indefesas e vingativas, fugiam para a calçada dos pedestres e arrancavam, sem um pingo de culpa, os retrovisores de carros estacionados.

Evolutivamente falando, andar de bicicleta não é algo que é como deveria ser. Deveria haver um mundo específico para os ciclistas. Um mundo plano e sem subidas, talvez, ou repleto de agradáveis e revigorantes descidas, mas nunca habitado por veículos movidos à combustão. Já um mundo onde carros e bicicletas são obrigados a coexistir (ou, na melhor das hipóteses, existir afim de se destruírem mutuamente) é, e sempre será, um mundo intrinsecamente errado e paranóico.

Mas há espaço para otimismo, como afirmam certos especialistas *. Pelo menos uma coisa mudou no trágico ecossistema das ruas: hoje, diferentemente do tempo das cavernas, existe um lugar onde a opressão cessa e as bicicletas podem, enfim, gozar do livre direito de ir e vir. Estamos falando da ciclovia, é claro, que vem se mostrando tremendamente eficaz: sobre ela, as bicicletas tornam-se presas ainda mais fáceis para a ferocidade sanguinária dos carros.

Afirmo, pois: se um ciclista pudesse expressar toda a experiência, sabedoria e terror adquiridos ao longo de toda uma vida de suplícios sobre duas rodas, com certeza diria: "por caridade, respeitem a ciclovia".




(*): tais especialistas, obviamente, andam de carro.