sábado, 21 de novembro de 2009

Um tal de Oblívio de Creta

Conta-se que há muitos e muitos anos, nos tempos da antiga Grécia, vivia um homem que era dono de uma habilidade peculiarmente notável. Chamava-se Oblívio, Oblívio de Creta, e por uma inexplicável coincidência instalara sua moradia na própria Ilha de Creta.

Uma parte de Oblívio era humana. As outras partes também. Isso por si só já era notável, visto que uma quantidade expressiva da população grega era metade humana, metade bicho (cavalo, bode, peixe, touro, árvore... ou coisa pior). A zoofilia divina - literalmente - comia solta, e ser um ser humano completamente comum não era lá uma coisa tão comum. Oblívio era, portanto, anormalmente humano.

Mas mais do que anormalmente humano, aquele pacato habitante de Creta era, como já dissemos, dono de uma habilidade estranhamente notável. Era isto: Oblívio podia esquecer.

E ele esquecia.

Esquecia qual era o sabor do alecrim, mastigado nas primeiras horas da manhã. Esquecia o cheiro dos narcisos desabrochando em seu jardim, nas tardes de primavera. Esquecia a melodia hipnótica que fluía das flautas dos sátiros, nos bosques, durante as noites de comemorações carnais.

O lado bom era que Oblívio esquecia que tinha dívidas, problemas, vizinhos chatos... essas coisas. A coisa chegava a tal ponto que ele, certa vez, decidira espontaneamente que passaria a viver sem respirar, bastando para isso esquecer que a privação prolongada de ar levava a uma morte óbvia.

Uma vez, um viajante do sul que se encontrava de passagem por Creta bateu à porta de Oblívio. Ouvira falar de seu incrível dom para o esquecimento e, desde então, o julgava como sendo o mais feliz dos homens. Diante dos olhos arregalados de Oblívio, explicou-se:

- O senhor é realmente sortudo – disse ele. - Entenda: você pode simplesmente viver o que quiser e, então, puuf!, escolher o que esquecer. Decepções, tristezas... da vida, você poderia sempre abandonar o que houvesse de pior. – E acrescentou: - Você é imune à dor.

Tendo dito isto, foi-se embora o viajante em direção ao sul. E no dia seguinte, Oblívio esqueceu a conversa.

O tempo passou. E Oblívio continuou a esquecer.

Tanto esqueceu até que, no fim de uma tarde morna de verão – tarde essa que, nos calendários de hoje, seria uma tarde de domingo -, Oblívio esquecera como era essa coisa de ter que existir. Entendam: ele se esqueceu.

E foi dessa forma que cessou a existência de Oblívio, o habitante de Creta que era metade homem, metade homem. O grego cujo único vestígio é uma estória sobre esquecer.