segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Bluebells: à beira de si

Tocam com força os sinos desse porto tão próximo: sinos azuis, potentes, de aço. Já tinha ouvido isso antes, quando? Os bléin-bléin pareciam tão novos e... desconhecidos... era isso: era como se o próprio desconhecido a invocasse de muito longe, de uma terra onde nem os revolucionários navios a vapor, que não respeitavam os ventos, eram capazes de chegar.

Ela olha as próprias mãos, só então percebendo como eram grosseiras e calosas. Mas ao menos tinham estória aquelas mãos, é o que pensa. Sente a terra tremer furiosa, por três vezes; e de novo aquele medo da porra percorre todo o seu corpo, explorando suas entranhas, zombando de suas dúvidas.

Pergunta-se, eu realmente preciso ir embora? Ah, merda - preciso, claro que preciso. Ouve os sinos tocarem novamente, lembrando-se que, agora, poderá ser quem quiser ser. Assim, de verdade! Suas comportadas máscaras de porcelana - convenientíssimas - ficarão aqui, para trás, e ela rir-se-á delas em referências futuras, quando a idade já lhe tiver levado a saúde e prateado seus cabelos.

Hoje até podia saber de muito pouco, saber de quase nada. Mas disto tinha certeza: ali, naquele porto, ao som azul daqueles sinos, haveria um marco magnificamente discreto, onde uma caligrafia improvisada diria, eterna:

"Foi a partir daqui que deixei meus ensaios e realmente passei a interpretar meu papel no mundo. Aqui jazem minhas idiotices, daqui brotam meus horizontes."

E canta: à beira de mim mesma, aguardo, tensa: será exatamente nesse mundo vasto que aprenderei a desfazer-me de mim, a fim de encontrar-me numa próxima estação. Perguntarei: quem é você? E então poderei responder: eu sou eu mesma.


terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O filho do som

Sentou-se sobre o silêncio da tarde, num dos braços do sofá que tinha no quarto e, ajeitando o violão no colo, se pôs a sentir. E sentiu: alisou a madeira lisa com a ponta dos dedos, dedilhou uma das cordas graves, pressionou a caixa contra as pernas, sentiu a força frágil da madeira. Lá fora, as cigarras berravam um trinado absoluto, natural. Era a época mais quente do ano, quando o calor se desprendia do ar, do chão e da vida, fazendo com que por pouco o mundo inteiro não derretesse.

Concentrou-se, ainda no sofá, lembrando do que já haviam lhe dito: que descendia de músicas, de estórias, de lendas. Sabia que em suas veias corria o sangue que pulsara ao redor de fogueiras ciganas, que gritara em rituais africanos de umbanda, que se emocionara em celebrações de casamento sioux, que se prostituíra em festivais pagãos. Tudo nele, tudo dele era antigo, ancestral e melódico; era o encontro de todas as vozes humanas, de todos os ruídos do tempo.