quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Noite balneária

... and I see you beneath the shades of smoke...

Menta e um sabor ressecado de cerveja se revezam no fundo da garganta, causando enjôos intermitentes que não sei se cessarão ou se aumentarão até que por fim eu vomite (isso apesar deles sempre cessarem). No fraco lume agonizante do cigarro anterior acendo o próximo, abastonado, novo, reluzente de promessas e escolhas que possuem prazo certo para se degradarem em longas baforadas de fumaça clara. E te vejo brilhando difusa, parcialmente etérea por detrás dessa névoa atabacada, ora se destacando em terrível majestade, ora se escondendo entre os novelos de fumaça, ora se mesclando ao nada, se repetindo bêbada em gracejos pessimistas e recordando músicos e músicas de uma juventude de outrora e ancestral.

Que necessidade é mais inútil? Qual a mais redonda das cores? Em qual palavra se vê mais recheio?

A noite – sempre generosa, materna e libertina – fecha seu cerco por sobre nossos debates, estrangulando habilmente para fora do tronco a seiva fresca dessa vontade de viver, amanhecendo a si mesma no santo suicídio de nossa nudez para o real. Desacalentados, percebemos que, embora sim-só-se-viva-uma-vez, essa vez acaba de ser: foi vivida nessa noite e perdeu-se. Embalados em embalagens vazias, descartáveis e agora inúteis, rarefeitos de dignidade, rastejamos para este novo dia abrilhantado de sol, opressor de tão azul, que, ignorante de toda forma de piedade, insiste na estranheza de nos fazer livres.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O que mais te assusta em você?

Escrevo somente o que me agrada e, talvez, seja precisamente esse o meu erro: crer que esse arremedo estético possa exorcizar minhas trevas. Efetivamente, escrever não me apazigua; escrever empresta beleza à minha inquietação. Como se os demônios que dançassem de mãos dadas em círculo sob o luar das minhas obsessões subitamente não provocassem apenas temor, mas também uma espécie inebriante de satisfação. Pois que tenho profundo orgulho de meus vícios, e desejo preservá-los.

O que dizer do homem que vê lirismo em suas quedas mais pessoais, ao invés de constatar (e pretender sanar) sua própria tragédia? Sou contrário ao banimento dos leprosos, quero tê-los por perto, circulando no centro da sociedade; quero essa amálgama que traduza o esplendor de suas chagas roçando as vestimentas coloridas que cobrem e recobrem os indivíduos arrogantes da nobreza. Almejo este ponto de vista divino, onde todas as partes contribuem equanimamente para o todo, sem distinção – sem distinção! Nada é tão belo quanto o funcionamento, quanto o giro veloz de engrenagens bem apertadas e lubrificadas. É o eterno sonho da orquestra cujos intrumentos não fazem desafinar.

No fim das contas, trata-se de uma débil e infantil busca pelo que é belo. Não é minha intenção abrigar meus monstros por suas fagulhas divinas, seus papéis essenciais no grande panorama onde todos os elementos desempenham função indispensável; não, o que realmente desejo é apenas livrar-me deles e de seu vergonhoso desatino antiestético. Vê-se que minha jornada é falsa e vazia de propósitos.

O que mais te assusta em você?

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Orquestra de milagres

Acordar de forma destemida e então operar uma osquestra de milagres, hoje o dia certamente será diferen... ah, mas que sono fodido.

Meu ânimo se esvai em corte profundos e supurados de um tédio por tudo imposto (o tédio é o imposto da vitória, ressaca da conquista). Lembro-me da energia, contudo; lembro-me de um estado de espírito despido de por quês, desnudando amplas extensões daquilo que não era: aquilo que viria a ser.

Minto, porém: é precisamente essa alma letárgica meu porto, minha casa de plácida mobília indistinta, abandonada a definhar mais lentamente que os estudiosos de seu definhamento. Sempre velha, sempre antiga e tão igual.

Noto o mundo com um olhar semicerrado de exaltada exaustão. Me canso em mim e, miserável de apoios, me deito e aguardo pelo segundo cansaço, cansaço conformado, desistente.

Durmo. Me lanço com sofreguidão ao sono... para acordar de forma destemida e então operar uma orquestra de milagres. Amanhã o dia certamente será diferente.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Yellow

Na prática, é muito difícil não ser hipócrita.

Toda percepção é sujeita ao julgamento, ao corte que nossa consciência faz dos fatos e das coisas. Tudo é visto através de uma lente, como se de todo o cenário somente algumas cores fossem realmente visíveis; vemos aquilo que somos, isso somente, limitado assim. Difícil dizer se há uma impressão genuína, despida de preconceitos e de pré-conceitos.

Ah, mas não no sexo. Sem roupa eu sou capaz de ver quem você realmente é, indo muito além da metáfora. Sem roupa eu posso te tocar e sentir e provar da matéria que te compõe, do que você é feita de verdade. O prazer remove meu julgamento, e também os cortes. A cama é um santuário de imparcialidade, neutra, elísia, dona da liberdade de podermos ser o que de fato somos.

Problema é que é muito difícil não ser hipócrita. É quase impossível dizer, de cara limpa, que minha decisão de dormir contigo foi só pra te conhecer melhor, pra te ver por inteiro, sem lentes, sem óculos e sem nada - é impossível convencer alguém disso, principalmente quando não é verdade, não inteiramente. A verdade, a patética e leviana verdade, é essa: te fiz minha pra saber a cor da sua alma, pra descobrir como você devia parecer aos olhos de Deus, e me apaixonei na porra do processo. Já dizia Anthony Kiedis:


This is the way I wanted it to be with you
This is the way that I knew that it would be with you
Way upon the mountain where she died,
All I ever wanted was your life...


Até o dia em que você puder me perdoar, parece que esse será o meu pedido de adeus.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Busunismos¹: sobre a raposa e as vovós

É inútil negar o meu sucesso com as vovós. Sim, é inútil.

Avós costumam gostar de mim. Inconscientemente elas percebem que, no fundo, pouco além dessa superfície envernizada e polida do rapaz de bons modos, reside um calhorda incorrigível, um Casablanca pós-moderno adaptado ao uso das redes sociais e da camisinha. É esse o estereótipo masculino ao qual elas se acorrentaram no passado, quando da primavera de suas juventudes, e ao qual elas ainda têm uma espécie latente de devoção apaixonada.

Arrogante, mas verdadeiro: eu fascino as velhinhas. E é através de suas netas que elas canalizam o fluxo desse desejo antigo e sempre incompleto de servirem a um mal maior, uma inteligência sensual e absolutamente sem princípios quando seus objetivos usam saias ou sandálias de salto alto. Quando me olham nos olhos, fazendo força para enxergar através dos óculos grossos de aros amarelecidos pelo passar de muitos anos, o que vêem é uma resposta acastanhada infalivelmente clara: seu mais novo neto – sou sempre bem-vindo na família – é um animal traiçoeiro que sabe cativar como ninguém; e recebo amor à primeira vista.

Na forma como eu entendo os fatos, Saint-Exupéry teria escrito uma estória sobre uma raposa alaranjada que, certo dia, cativara uma Pequena Princesa, descedente de uma longa linhagem de astros, e que, após certa noite, fugira florestra adentro até o vilarejo mais distante, carregando na boca um coração gotejante, ainda quente, enquanto a neta da realeza jazia sobre um catre qualquer com um vazio sanguinolento no lugar do peito. Dois dias depois, quando o dono da hospedaria encontrou o corpo da garota, a notícia rapidamente se espalhou pelo pequeno povoado. A avó da menina, quando foi avisada sobre o acontecido, só fazia suspirar. E maldizia: eu daria tudo para estar no lugar da minha neta – tudo...



1: o termo se refere ao tipo de pensamento solto e insensato que geralmente se desprende em ônibus, busões, busús, carros, carretas, passeios de bicicletas, aviões lotados, caminhadas ou longas faxinas domésticas.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Fora de si,

não por raiva, mas por outro tipo de descontrole. Há uma locomotiva infinita, vagão conectado a vagão, seguindo em frente, sempre em frente. Posso ver um vagão em particular passando, o meu vagão, o espaço que ocupo no mundo. E observo: está vazio.

Parece que desci na estação pra fazer alguma coisa (ir ao banheiro, comprar um chocolate na loja ao lado, respirar um pouco de ar puro) e, de uma hora para outra, me encontrei estagnado, estacionado, vendo o trem já em movimento, arrastando minha vida para longe de mim e do meu controle. Os vagões que passam ruidosamente ao meu lado não são meus, são dos outros...

Correr pra quê, ficar pra quê: ando por aí sem pressa, ouvindo o apito do trem se perdendo na distância, alheio à nítida certeza de que estou cometendo uma cagada monumental. Há pessoas que passam por perto, e eu sorrio e aceno pra quem se importa - minha encenação de "que nada, tá tudo bem" desconhece limites.

Estou por fora de tudo, inclusive de mim.