quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Reincidências

(pois que meus relâmpagos partem sempre a mesma árvore)

Longe de mim mesma, hoje desliguei-me de você, mesmo que não quisesse (quem? Eu ou você?). Decidi coisas que já aconteceram, atendi à preces de enfermos que já morreram. Compreende? Hoje eu renovei essas velharias, cumpri os prazos que já tinha perdido.

Não foi tão difícil... só é difícil quando você me vem à cabeça, me atropelando feito um trem, fazendo-me sentir vergonha da minha debilidade, vergonha de mim frente a mim.

Como poderia contar-lhe o que me sucedeu? E de novo? É você quem sempre possui as respostas, então que me dê uma!

Egotista...

Egoísta...

Sou eu quem separa você de mim, que me ponho entre nós. Ninguém pode contra isto, sabe?

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Submersão subversiva

Sons brilhantes provenientes de aquedutos tranquilos, soltos ou em rodopio. Redes de pesca são habilmente lançadas aqui e ali, a esmo e ao além, buscando enredar peixes que já não existem mais.

Já não existem mais...

Aquedutos que desaguam numa lagoa profunda, um tanto turva, onde a luz não penetra mais do que uns poucos metros além da superfície. O fundo é frio, lodoso, mudo. O fundo é morto. Mas o desprovimento de vida ainda assim consegue emprestar beleza a essa lagoa; a beleza da paz, da calmaria que nada precede e por nada espera.

Contudo, um espichão, um movimento. A lagoa pressente que algo se move em suas profundezas elíseas. Há em mim algo estranho e intruso, ela confessa ao aqueduto, algo que em breve abandonará minha escuridão e virá à tona do ar e dos sons. E gritará: a natureza destas águas não é mais morta, pois eu (presumo que é provida de consciência), eu a habito em clandestinidade. Minha semente já foi plantada, e, tal qual Yggdrasil, brotará a ponto de tornar-se mundo. Um mundo chamado...

... chamado...

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Semeando-se

Depois de passar os últimos cinco anos quebrando a cara em relacionamentos estéreis, Marina Mariflor finalmente se decidira: se tornaria árvore e passaria a viver como tal.

Inabalável, juntou três pequenas pás, um saco de terra, um punhado de adubo e um vaso de barro – rústico, porém simpático –, onde suas futuras e esperançosas raízes pudessem caber e com folga crescer.

Ainda inabalável, encheu um balde com água até a boca e esperou pelo nascer do próximo dia, no exato momento em que o sol se revelava ao mundo sob o auge de sua boa (e brilhante) vontade.

Imutavelmente inabalável, encheu o vaso com a terra, despejou um pouco de água, adubo e misturou tudo com as próprias mãos – futuramente seus graciosos galhos – para garantir que não lhe faltariam nutrientes ao longo de sua nova e amadeirada vida.

Por fim, plantou-se. Retifico: semeou-se. Sua vida floresceu, literalmente: a pele engrossou até casca virar; o cabelo esverdeou até folha s’abrir; as raízes cresceram até o vaso romper; e o coração vegetalizou-se até a tristeza escassear.

Séculos mais tarde, após ter sido desrespeitosamente cortada em tábuas por uma madeireira clandestina, Marina Mariflor ainda era uma estante de mogno insuperavelmente feliz, obrigado.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Tenso, logo existo. Rogo: tencionamos existência

O encontro do louro acobreado de suas madeixas espalhadas com o púrpura aveludado das cobertas criava o contraste mais impressionantemente belo que seus olhos - sempre ávidos - haviam observado.

Ele sentou-se na beirada da cama, ao lado dela (que acabara de deitar-se de bruços), e, empurrando o cobertor para o lado, desnudou toda a alva extensão que ia do início das costas até o princípio das nádegas. Acariciou-a: começou pelo pescoço e, muito lentamente, percorreu o caminho que descia pelo meio das costas, indo terminar com ousadia entre suas pernas, na parte detrás da virilha, que ainda permanecia coberta. Tudo liso, tudo morno.

Ela mal despertara do sono e, ainda lânguida, sentia o caminhar firme das mãos dele por sobre seu corpo nu, perscrutando e investigando cada detalhe de seus entalhes, se demorando ora nos cabelos, ora nos braços, ora nas espáduas, ora nas suas curvas de mulher. "Hora avançada", ela pensou; mas acordara imersa no desejo de passar todo aquele dia na companhia dele, e portanto a hora pouco importava. Ele, por sua vez, retribuiu tal sentimento: "eu também", pensou. "Eu também", pensou novamente, sem contudo emprestar ao pensamento a escultura sólida da palavra falada.

Apaixonara-se irrevogavelmente - no seu mais perfeito estado de sobriedade e lucidez - por esse espetáculo de traços sublimes e macios, bem ali, na meia-luz fresca que a claridade do dia tentava forçar, em vão, por entre as frestas estreitas das persianas.

terça-feira, 30 de março de 2010

Estupidez de Arlequim

As exigências da sua dança
acorrentaram-me enfim,
forçando-me uma aliança
de um rubro carmesim.
Mas finda a nossa transa,
pensei numa besteira assim:
pesa o que sinto contigo,
não a pena que tem de mim.

E sobretudo o que me lança
é essa estupidez de Arlequim,
pois na Itália ou na França,
meu destino é um triste fim:
que por espada ou por lança
não morrerei espadachim
mas, traído numa dança,
ver-te-ei rindo de mim.

sábado, 20 de março de 2010

Rock irlandês pra me libertar


Não tinha nada pra dar certo, a não ser pela unânime promessa de que o espetáculo seria, de fato, um espetáculo.

Me espremi pelo congestionamento humano, abrindo caminho por entre vulgaridades gratuitas e outras nem tanto, entre rostos mais jovens e outros nem tanto, entre all stars puídos e outros nem tanto (o meu era puído, além de verde; ora, era Saint Patrick's Day!).

Esperamos. Na verdade, quase morremos de esperar. Mas o show começou, afinal.

Whisky in a Jar. Música, Piratas e Rum. Shipping Up to Boston. Cuitelinho(?!). Eruption! Dueling Banjos... meu, Dueling Banjos! Música celta com ritmo de baião, e acordeon, e flauta, e violino, e banjo, e guitarra, e bateria, e rabeca, e... e... doidera! Simplesmente sensacional.

Pausa de quinze minutos, tanto pra banda quanto pro meu pula-pula incessante e desatinado. Lá fora, no curral dos fumantes, ganhei um cigarro dum tal de Samuel (ou algo assim), que era um

- Baterista.

- Hmm. De qual banda?

- Da que tá tocando aqui hoje.

Naaaahhh! Muito, muito gente boa esse Samuel (ou algo assim) - que além de músico era também vagabundo por talento, mochileiro por profissão e bom de papo por prática, eu presumo. Ele me contou como era ter uma banda e ver as pessoas do palco, como era fazer música e, por isso mesmo, se divertir mais do que o próprio público. E pela primeira vez me dei conta de que, céus, como eu queria ter uma banda...

Recomeçou a ópera. Músicas ainda mais fantásticas, dancinhas ainda mais bacanas e meu pula-pula ainda mais ensandecido. O vocalista tocou uma gaita de fole - uma gaita de fole! -, que é indiscutivelmente o mais formidável entre os instrumentos formidáveis do mundo.

E por fim, coroando o fim do show com o autêntico espírito festivo dos celtas, uma garota da platéia demonstrou invejável perícia ao manejar e quebrar, no nariz de outra garota, uma nada civilizada garrafa de cerveja - e isso sabe-se deus por quê. Só me dei pelo acontecido quando alguém, em profundo desespero, apontou para o meu braço e exclamou "jesus cristo, olha todo esse sangue!". Felizmente, não era meu sangue. Infelizmente, sujou meu all star todo.

É portanto com alegria que afirmo: por uma noite, eu fui irlandês.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Killing lies¹

Até hoje, nada a tinha assustado...

Ela não havia acordado cedo nem cumprido suas próprias metas; passara o dia boiando à deriva, prostrada por si, proscrita em si, afogando-se numa maré agradável de memórias mornas. Segundo Virginia Woolf, ela mergulhara como que por completo num clima crepuscular de afáveis reminiscências.

Até hoje, nada a tinha assustado tanto quanto a...

Pensar enlouquece, e ela pensa nisso. Pensa tanto que, tomada por um acesso sufocante de remorso, retoma rapidamente todas as suas obrigações e afazeres, escaldando a própria depressão numa sucessão de xícaras quentes e transbordantes de café espresso².

Até hoje, nada a tinha assustado tanto quanto a inequivocável sensação de que...

A paixão é justificada, seja isso efêmero ou perpétuo. Pois ela se mortifica ao vê-lo caminhando na sua direção, semblante sorridente, vindo (desinteressado) beijá-la e abraçá-la como se não houvessem, ainda ontem, compartilhado o sono etílico dos boêmios.

Até hoje, nada a tinha assustado tanto quanto a inequivocável sensação de que dormira nos braços dele a noite mais ímpar (de todas as muitas e muitas noites que fizeram parte) de sua vida.



¹: sim, o título é (outra...) música do The Strokes.
²: para o meu total desespero, é com "s" mesmo.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Amoras partidas

São as sapatilhas finas de um tecido escuro que deslizam leves pelo salão, aceitando com presteza todos os movimentos que partem da minha dança. Não são os olhos que me impressionam, nem a boca de amoras firmes, nem os cabelos macios; não. Assim fosse, mais fácil seria conter dentro de mim essa atração perfumada da carne. O que de fato me impressiona é a leveza do seu corpo jovem, sempre seguida de gracejos e sorrisos cobiçosos (cobiça sensual e infantil, transcendental; uma cobiça do tipo que não se vê no rosto dos mortais).

Perco as rédeas dos meus passos e, após um giro breve, sinto seu corpo quente colado ao meu, suado, num abraço apertado. Meu desejo timidamente implora: quero que me sinta como eu te sinto, cinto em volta da cintura, desafivelado, palpitante. Mas é você quem, curiosamente, beija minha boca exatamente como eu te beijaria, de corpo inteiro, totalmente às avessas do machismo barato que se ensina nos livros e nas escolas; e tudo quanto há em mim, carne e sentidos, é dominado com opulência pelos contornos finos de sua orquestra de lábios, saliva e respiração.

Prometo que não faremos amor, pelo menos não hoje, e uma parte sombria de você se derrete ante a possibilidade de estar diante não de um animal no cio, mas de um homem que finalmente fosse capaz de respeitar e contornar seus assustadores abismos de feminilidade – isto é, alguém que pudesse depreender de você o que nem você nem ninguém haviam conseguido até hoje. Mas tal derretimento é fugaz e, cobrindo-se novamente no íntimo com recentes pessimismos, você se despede (e me despede) com um beijo menos empolgado do que o esperado, meio cruel, alegando que a hora é avançada e que o sol já nasce no horizonte.

E, coincidência ou não, é a voz agradavelmente cavernosa de Julian Casablancas que sai dos alto-falantes do carro, explicando na volta pra casa:


Razor blade, that's what I call love:
I bet you pick it up and mess around with it
If I put it down
It gets extremely complicated
Anything to forget everything…





PS: A dor de estômago (não deveria, mas) me põe mais romântico. Irônico, não?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Porque ele dói tanto,

escrito assim desse jeito, sem pronome possessivo nem carência de atenção. Alguns nascem de corpo feito para o amor, outros para a guerra, outros para a arte. Mas o seu corpo só fazia doer: suas costuras eram todas traumáticas e, seus ligamentos, ressequidos. Tentar tocá-lo quase sempre compunha uma tragédia - a sensação em si bastava para torturá-lo. A intensidade com que sentia os fatos da vida advinha não da natureza destes, mas da fraqueza do seu próprio ser, seu próprio sentir.

Já não mais podia acompanhá-lo, fosse em distimia ou em neurastenia. Cansou-se pois, como que contaminada pelo cansaço imperecível que ele irradiava. Se seu carinho e devoção não haviam sido suficientes para anuviar seu sofrimento pálido diante da obrigação de viver, então a dor de perdê-la novamente não seria nada além de mais um item banal em sua extensa coleção de desconfortos mortais.

Disse-lhe: então adeus, meu caro, meu ardor, meu ar e minha dor. Pois que também sou montanha e tenho em mim segredos que pretendo desvendar.


As dores que me pedes, as perdes em si mesmo:
Marinho e azul-sozinho, sem as graças que eu teço.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Palavras comuns (e outras desconexidades)

A força real da nossa mediocridade vem da união: em conjunto, somos completamente cegos, estúpidos, moralistas e brutais. Somos, verdadeiramente, uma multidão de crueldades.

Não sei usar as palavras como você, nem nunca soube. Tudo em mim é comum. Só sei das sílabas mais simples, ordenadas em fonemas banais, e por isso raramente preciso (d)o que sinto. Mas entenda: ainda assim, sinto: quem sabe até com mais força do que você o sente. Não seria esse o motivo por que minhas impressões não têm tradução? Falo minha própria língua com minhas próprias letras, ambas à parte de tudo. Meu alfabeto é todo de ambigüidades – a isto não cabe explicação.

Arrepio: há o arrepio do frio, quando afrouxamos um abraço bom. Há o arrepio do medo, quando a noite nos desperta para a asfixia solitária do escuro. Há o arrepio do desejo, quando alguém, sem roupa, imperiosamente nos diz “vem, vem me provar”. Há o arrepio do fim, quando a morte nos sorri o sorriso mais cálido que (ah, ironia) nossa incapacidade nos permite compreender. Todos são arrepios, todos se chamam arrepio. E são todos desconexos entre si.


O inferno que espero não tem crença nem credo,
Não é quente nem frio, não é aço nem ferro.
Não tem broncas nem mínguas, nenhum tom severo,
Só tem os excessos nos quais desespero.
(e a tal realidade em que me afogo e me enterro)