quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Busunismos¹: sobre a raposa e as vovós

É inútil negar o meu sucesso com as vovós. Sim, é inútil.

Avós costumam gostar de mim. Inconscientemente elas percebem que, no fundo, pouco além dessa superfície envernizada e polida do rapaz de bons modos, reside um calhorda incorrigível, um Casablanca pós-moderno adaptado ao uso das redes sociais e da camisinha. É esse o estereótipo masculino ao qual elas se acorrentaram no passado, quando da primavera de suas juventudes, e ao qual elas ainda têm uma espécie latente de devoção apaixonada.

Arrogante, mas verdadeiro: eu fascino as velhinhas. E é através de suas netas que elas canalizam o fluxo desse desejo antigo e sempre incompleto de servirem a um mal maior, uma inteligência sensual e absolutamente sem princípios quando seus objetivos usam saias ou sandálias de salto alto. Quando me olham nos olhos, fazendo força para enxergar através dos óculos grossos de aros amarelecidos pelo passar de muitos anos, o que vêem é uma resposta acastanhada infalivelmente clara: seu mais novo neto – sou sempre bem-vindo na família – é um animal traiçoeiro que sabe cativar como ninguém; e recebo amor à primeira vista.

Na forma como eu entendo os fatos, Saint-Exupéry teria escrito uma estória sobre uma raposa alaranjada que, certo dia, cativara uma Pequena Princesa, descedente de uma longa linhagem de astros, e que, após certa noite, fugira florestra adentro até o vilarejo mais distante, carregando na boca um coração gotejante, ainda quente, enquanto a neta da realeza jazia sobre um catre qualquer com um vazio sanguinolento no lugar do peito. Dois dias depois, quando o dono da hospedaria encontrou o corpo da garota, a notícia rapidamente se espalhou pelo pequeno povoado. A avó da menina, quando foi avisada sobre o acontecido, só fazia suspirar. E maldizia: eu daria tudo para estar no lugar da minha neta – tudo...



1: o termo se refere ao tipo de pensamento solto e insensato que geralmente se desprende em ônibus, busões, busús, carros, carretas, passeios de bicicletas, aviões lotados, caminhadas ou longas faxinas domésticas.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Fora de si,

não por raiva, mas por outro tipo de descontrole. Há uma locomotiva infinita, vagão conectado a vagão, seguindo em frente, sempre em frente. Posso ver um vagão em particular passando, o meu vagão, o espaço que ocupo no mundo. E observo: está vazio.

Parece que desci na estação pra fazer alguma coisa (ir ao banheiro, comprar um chocolate na loja ao lado, respirar um pouco de ar puro) e, de uma hora para outra, me encontrei estagnado, estacionado, vendo o trem já em movimento, arrastando minha vida para longe de mim e do meu controle. Os vagões que passam ruidosamente ao meu lado não são meus, são dos outros...

Correr pra quê, ficar pra quê: ando por aí sem pressa, ouvindo o apito do trem se perdendo na distância, alheio à nítida certeza de que estou cometendo uma cagada monumental. Há pessoas que passam por perto, e eu sorrio e aceno pra quem se importa - minha encenação de "que nada, tá tudo bem" desconhece limites.

Estou por fora de tudo, inclusive de mim.

sábado, 17 de setembro de 2011

A queda ascendente

Noite, sentados um de frente para o outro.

Seu olhar divido em duas claras e esverdeadas profundezas, abismos vertiginosos que davam vista a uma alma permanentemente excitada. Não me tolhi do direito de afundar cada vez mais na sua força, sua feminilidade genuína, enquanto alisava com as mãos a porção rubra do seu cabelo. Me coloquei mais perto dela e senti no meu rosto sua respiração em lufadas quentes, as bocas muito próximas e em perfeita estática. Mudou suas pernas de posição, seus braços se afastaram do colo, deixando as mãos sobre os joelhos.

Meu coração tropeçava, quicando e quase me causando dor: podia ouvi-lo? Em certos momentos, quando deitava sozinho na cama, eu jurava ser capaz de sentir meu coração reverberando no colchão, no estrado de madeira, pelas paredes do quarto e nos encanamentos por trás dos tijolos do mundo. Podia ela sentir também? Seria possível que risse de mim, desse meu terremoto íntimo? Meu coração é um titã encarcerado, uma besta alada entre as costelas - você escuta?

Entrecerraram-se os abismos, olhos fechados por um instante, um momento de espera. A própria noite à espera, assim como tudo mais: a grama e as plantas, a paisagem distante, o firmamento nublado, Júpiter, Saturno e Urano. Toda a criação silenciara, à exceção dos grilos. Meu Deus, quanta consciência disso tudo, quanta sobriedade. O rubor do meu rosto derreteria metais.

Pausa. Pausa inesgotável que precede o êxtase. A insinuação da dúvida, a insegurança das apostas, o vazio preenchido pelo abandono da certeza. A máxima sensibilidade.

Empurrei-me para frente, lançando-me de encontro ao destino fresco do seu beijo, dedos embrenhando-se entre as mechas recém-cortadas e descendo até o pescoço alvo, a nuca. Por muito tempo permaneci assim, explorando com curiosidade as idiossincrasias dos seus lábios, da sua saliva adocicada, procurando pela língua tímida e pelos cantos da boca, beijando também as bochechas, o queixo, as maçãs delicadas do rosto. Beijei inclusive os olhos, aquelas pálidas e profundas esmeraldas, me sentindo tal qual um Lúcifer que caía das torres da Cidade de Prata em direção a outra espécie ainda mais selvagem de paraíso - um anjo em queda ascendente, na momentânea inutilidade de todos os infernos.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Entre o que foi e o que pode ser,

à deriva sobre minhas ou alheias certezas
(buscando intermitente um sei-lá-o-quê),
tem algo que não me sai da cabeça.

E é: estar em posse de uma memória que ensaia suas primeiras falhas me parece um dos superlativos da falta de consolo.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Sobre como jamais, jamais lavar louça


É do senso comum que, dentro da grande nação que é a cozinha, o ato de lavar a louça é bem mais do que um mero dever: é uma obrigação cívica, uma demonstração moral de cidadania e higiene. Das pequeninas e simpáticas colheres de café até as desafiadoras e aterrorizantes panelas encardidas com óleo de fritura, são muitos os artifícios que a pia – esse monstro tirânico que nada teme e nada poupa – possui para nos testar até os limites da nossa paciência e da pele de nossas mãos. Não existem leis depois de abrir a torneira: ou você lava tudo, ou morre tentando.

Porém, essa era de agonia doméstica finalmente chegou ao fim. Há entre nós um herói, alguém que ouviu os milhões de lamentos ensaboados ao redor do mundo e os sintetizou numa solução adstringente definitiva para nossas batalhas contra aquele arroz queimado que grudou no fundo da panela.

Sim, meus caros, há uma solução... ou quase.

Apresento-lhes o fantástico, o rebelde, o irrecusável GUIA SOBRE COMO JAMAIS, JAMAIS LAVAR LOUÇA NUMA REPÚBLICA, escrito e editado por ninguém menos do que Leandro Freitas, o jovem mineiro que alcançou fama mundial pela façanha de nunca, jamais haver lavado um copo sequer.

Em entrevista exclusiva ao Sabe... ?, Leandro nos conta que nem tudo eram flores em sua vida. Logo aos dezessete anos ele se viu obrigado a sair da casa dos pais e morar num alojamento estudantil em Rio Preto, cidade do interior paulista, para cursar a universidade. Mas foi na cozinha desse alojamento que nosso intrépido rapaz começou a desenvolver as primeiras técnicas que lhe trariam fama e fortuna. “Eu já tinha idéias sobre como não ter que lavar louça desde os meus treze anos”, esclarece, “mas foi só quando comecei a fazer faculdade que realmente pude botar tudo em prática”.

Pois bem, chega de lenga lenga. Sabe... ? trás até vocês, em primeira mão, alguns excertos desse verdadeiro balde de sabedoria que é o GUIA SOBRE COMO JAMAIS, JAMAIS LAVAR LOUÇA NUMA REPÚBLICA, que será lançado no próximo mês pela editora Katcho Books:



GUIA SOBRE COMO JAMAIS, JAMAIS LAVAR LOUÇA NUMA REPÚBLICA

(ou: 277 passos elementares para fazer que os outros lavem a louça por você)


Passo #1: não sujou, não lavou – não cabe a você lavar uma louça que não é sua.

Passo #2: se você disser que vai lavar louça, não precisa dizer quando você vai lavar a louça.

Passo #9: ao encher uma panela com água para amolecer a sujeira, você fica automaticamente dispensado da obrigação de lavar essa panela.

Passo #13: louça suja sobre o fogão é algo fora da sua jurisdição. Ignore-a.

Passo #14: louça suja sobre a mesa também é algo fora da sua jurisdição. Despreze-a.

Passo #22: após deixar louça suja sobre a pia, ausente-se de casa durante longos períodos (por exemplo, viaje). Quando voltar, pode apostar que sua louça estará limpinha e guardada.

Passo #43: se a louça é complicada demais para ser lavada (grelhas de churrasco, jarras exóticas, taças de cristal, etc.), então não lave.

Passo #44: se a louça está suja demais (panelas com óleo de batata frita, frigideiras emporcalhadas, etc.), então também não lave.

Passo #97: “no dos outros é refresco”, de fato – e é exatamente por isso que não é você quem deve lavar a jarra.

Passo #102: tirou os pratos e talheres sujos de cima da mesa? Parabéns: você está imediatamente dispensado de ter que lavá-los.

Passo #155: se foi você quem providenciou o jantar, então não é você que vai limpar a sujeira.

[Adendo ao passo #155: se foi você quem trouxe a coca-cola para o jantar, aplique as regras do passo #155.]

Passo #156: mesmo que outra pessoa tenha providenciado o jantar, não há nenhuma lei que te obrigue a lavar a louça depois (em caso de contradição com o Passo #155, consulte o Passo #97).


Gostou da prévia? Então garanta já o seu!

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Saia de malha

Coxas brancas, lisas e cobertas por uma saia de malha também branca, esbarram nas costas da minha mão a cada vez que tento trocar a marcha do carro.

A meia luz dos postes que passam e a penumbra fosforescente da noite se refletem na boca que se abre num sorriso, que não sei bem se é sorriso mas, seja lá o que for, estou certo de que não é meu e sim seu. Procuro entender qual é a situação e quais seriam suas implicações, se talvez a imagem de você sorrindo pra mim não seria uma ilusão criada pelos caprichos de uma mente estimulada com álcool e com suor de gente, até o momento em que uma muito grande e muito escura sombra de árvore encobre o carro (parece que resolvi estacionar numa região erma), e giro para trás a chave na ignição: o motor do carro silencia, desligado.

Silêncio. Se estivesse sóbrio, sentiria meu coração tentando explodir.

Minha mão direita solta meu cinto de segurança e posso perceber, apesar da escuridão, que você também solta o seu cinto. Te trago pra perto de mim - uma mão na nuca, a outra num dos seus seios - e quando nos beijamos meus lábios me transmitem a mensagem de que sim, você estava sorrindo o tempo todo, inclusive agora mesmo, orgulhosa da fascinação que seu corpo me causa. Desajeitadamente você tenta desafivelar meu cinto; auxilio o processo abrindo o botão e o zíper da calça; ergo minha camisa até o peito e, buscando uma das suas mãos, te guio até um ponto onde você não possa ter dúvidas quanto ao meu desejo; você me aperta, me acaricia, e me aproveito da sua excitação para tatear suas pernas, brancas no escuro, lisas por baixo da saia; toco suas curvas e suas convexidades de um modo feroz, pulsante e todavia delicado; você sai do seu assento e se vira sobre mim, pernas abertas, sentando-se de frente no meu colo; o câmbio da marcha do carro atrapalha mas não impede nosso encaixe, que é apressado, um pouco doloroso, mas molhado e perfeito; as demais partes dos nossos corpos procuram um meio de devorarem umas às outras, mão, lábios, língua, respiração; seu perfume e sua umidade se desprendem com mais força quando você aumenta a freqüência dos seus movimentos, e eu inalo tudo isso - o odor doce, a fúria, a sofreguidão.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Pelo reencontro

De toda a série de agonias mortais a que somos expostos antes do coração parar de bater no peito, certamente a mais cruel é a inevitabilidade do reencontro. Pois, se há alguma verdade nesse mundo, é essa: a de que todos estamos fadados a nos reencontrar, tenha sido a última despedida feita de maneira indiferente, insultante ou civilizada. Todos iremos nos rever e, no momento dramático em que avistamos (e somos avistados pel)a outra metade que compõe o reencontro, perderemos tanto o fôlego quanto a paz estomacal - isso pra não mencionar o pesadelo do suor nas mãos.

Ainda na linha da agonia, feliz fui eu, masoquista que sou, por ter aproveitado cada centímetro de constrangimento quando te abracei novamente e percebi que, talvez com a atitude adequada, poderia ter uma vez mais a morenice plena do seu corpo se contorcendo na obscuridade perfumada e mal-afamada da minha cama.

E eu sabia que teria. Não importava que tivesse de cancelar todas as opções libertinas planejadas para mais tarde. Por hoje, meu triunfo seria te ter inteiramente. Te ter novamente.

Então adeus à agonia, adeus àquele namoro pueril em que por vezes fui obrigado a frustrar minha primitividade e solucionar os dramas morais que você tinha com o seu próprio corpo. Nessa noite sem rodeios, compassada pela arte do que aprendemos durantes esses quatro anos em que a razão nos manteve separados, seríamos dominados - ou melhor, seríamos executados - pelo regime ditatorial da nossa recém-adquirida fome de gente.

Horas depois, quando na manhã implacável que nos persegue desde o outro lado do mundo, acordaríamos ao lado de um estranho: eu pra você e você pra mim. Nos despediríamos civilizadamente, afinal, pra que criar caso? Pra que ter um caso? Agora somos solteiros profissionais que sabem separar as coisas muito bem e que entendem dessa tal de diplomacia pós-flashback.

Se é assim que manda o protocolo, então tá. Tchau.



PS: seria a agonia opcional? Ora, é claro que não. Só é opcional o prazer que buscar aliviar a agonia mútua desse destino nefasto que rege o reecontro. O resto é conversa fiada.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Banguela Arlequim

O Arlequim sobe as ruas de subidas acentuadas,
ajeita a gola de um algodão descolorido,
ressona o guizo que balança do chocalho
e na graça de Colombina improvis’um sorriso.

O Arlequim corre a rua de ladeiras acetinadas,
torce os ligamentos do tendão enfraquecido,
espatifa a cara entre as pedras do cascalho,
maquiando o mundo com um rubro indeciso.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

You used to be one of the rotten ones

and I liked you for that...

Embora não passe de hipocrisia artificial, devo confessar que me alivia saber que você está bem. Como já dizia o rapaz que morava comigo, "se você fez errado, não te consola o fato de que alguém conseguiu fazer certo?", e sim, consola mesmo. A felicidade alheia é uma verdade distante que não admite muita frescura: ou você se contenta calado ou simplesmente morre de inveja, e, dado o cenário, acho que prefiro esse meu silêncio pretensioso. Por mais que eu tenha parasitado sua libido e sua decência durante todo esse tempo, acho que ainda é possível escolher uma maneira sensata de seguir em frente, de te ver seguindo em frente. Mesmo que parte de mim se corte de dor pela dúvida do que poderia ter sido, e também pelo desperdício do que foi, esse é ao menos um preço pequeno - ou se preferir, repleto de patética canalhice - a se pagar frente à moratória do meu mau caratismo.

E bom... é isso.



PS: sim, ainda há espaço textual para Emily Haines perpetrar o que eu sou por trás de todas essas máscaras:

Now you're all gone, got your make-up on
and you're not coming back... (ain't coming back)
Park that car, drop that phone,
sleep on the floor, dream about me
Bleachin' your teeth, smiling flash
Talking trash, under your breath

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Unlikely, pressing "unlike"

Pra mim não deu, e você sabia que ia ser assim.

Engoli a falta de coerência das suas explicações por praticamente quatro estações (verão, primavera, outono e inferno), apodrecendo sozinha na noite dos sábados em que eu te dava por morto ou desaparecido. Não que isso importasse, já que uma-duas vezes por mês você aparecia pra comer e usar minha carcaça triste com uma alegria abutresca, e enquanto durasse o ato eu me sentia satisfeita. Inclusive é graças ao seu sadismo que me descobri assim, satisfeita em me sentir brutalizada conquanto me amem.

Mas agora, meu bem, agora nossa estória virou história. Minha ficha caiu e eu acabei me lembrando de que, quando quebrei a casca do meu ovo, lá onde o Judas perdeu as botas, a criatura faminta e semimorta que se arrastava pra fora do ninho não estava predestinada a se engasgar com metades. Eu nasci, querido, foi pra engolir a vida inteira.

Morremos um para o outro. E confesso: nunca pensei que morrer pudesse ser tão, tão tonificante pra mim - e também pro meu cabelo.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Rise of the robots

“O levante dos robôs, a insurreição dos circuitos. A justiça alada e armada com o metal que nos vingaria a todos, a mim e a você...”

Foi a primeira coisa que me veio à cabeça na manhã de ontem, tão clara como se a tivesse lido numa página de livro com encardenação vermelha e um marca-páginas feito com uma tira fina de cetim verde. Já repararam? É um cetim sempre verde, sempre marcando páginas. Nunca vi de outro jeito. E a frase continuava martelando, surda e alheia à minha incompreensão do uso correto da crase.

Reagi defensivamente: prometi nunca mais beber de novo e botei a culpa nos meus amigos de república, que lá no fundo eu sabia serem vampiros bascos. Mas a frase permanecia, ausente de explicação e de significado; pra mim a justiça devia ser... sei lá, cega - alada, nunca. Ai de mim se fosse alada!

Fugi pro banheiro. Reais ou não, aos olhos dos robôs somos todos iguais perante o trono.

Digo, sobre o trono.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Maybe I dreamed of you

and maybe I’m still dreaming. Acordei com a lembrança fresca do fusca estacionado de lado na estrada de terra, esperando a manhã começar, você com um lenço na cabeça pra prender os cabelos e dizendo as coisas sempre de um jeito tão divertido. Me lembro da represa, da água morna, de ter que carregar o caiaque reclamando dos mosquitos e de ficar sentado do seu lado olhando as nuvens de chuva antes da janta ficar pronta.

Era tudo inútil mas era também maravilhoso. Aqueles sorrisos em que cada pedacinho de tempo valia a pena, de que morreríamos felizes na Itália deixando pra trás uma vida não necessariamente notável, mas cheia de coisas interessantes. Pouca coisa importava além de você, da sua voz e da noite em que cantamos Silverchair, bem baixo pra não acordar os vizinhos.

Sumimos um do outro e isso não nos matou. Essa noite sonhei com a gente e isso também não me matou. Ainda sonho com você dedilhando errado o solo de House of the Rising Sun, numa noite meio clara... e embora eu quisesse muito, não adianta, isso não me mata.

Minha triste verdade é que jamais se morre por amor. Ainda que seja muito, ainda que seja tudo, a vida não se compadece: desapiedada, insiste em viver.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Adentro do por dentro

Estou começando a odiar os porquês de tudo, as formas mais elaboradas e abarrotadas de inquéritos.

A única coisa que tenho, que possuo, é o tempo; e, ainda assim, não sei se me será suficiente.

Olhe pra mim sem me ver: será melhor pra mim e pra você.

O mais belo de alguém não está naquilo que se conhece. O mais feio também. Mas eles são o equilíbrio necessário, portanto...

Sou ruim, sou mesquinha, nojenta e estúpida, mas o apogeu da minha estupidez, mesquinhez e maldade não interessa a ninguém, bem como minha bondade plena, minha sincera amizade e outras tolices mais.


-E. M. P., dezenove anos.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Meu amor de amoras amorais

(e outras cacofonias ridículas)


imoral: contrário à moral; desonesto; libertino.
amoral: que não é nem contrário nem conforme à moral.


Num mundo cruelmente limitado pelas palavras, restam as analogias.

Sinto falta daquilo que não posso sentir falta, isto é, sinto falta de algo cuja falta não é passível de ser sentida. E sei que esse mesmo algo sabe de mim, que me nota e que também sente... falta.

Quero que me abracem e que me sintam como eu te sinto; cinto em volta da cintura, desafivelado, palpitante. Beijo minha boca como você me beijaria, e me pergunto: será? Hoje você pensou em mim, e se perguntou: seria?, mas a resposta soou pretensiosa.

Me afundo nos estudos, na dança, nas viagens e no álcool, tudo pra ver se encontro qualquer coisa que seja, porém, acho eu, não acho nada. Só acho que sinto um amor sempre pronto, confeitado, enfeitado - basta levar e comer. Se a procura for grande eu divido em vários pedaços, não tem problema, até empresto uma ou duas vasilhas.

Hoje acabamos com um beijo, um abraço e um carinho (pasmem, roubado; foi-se a época em que só se roubavam beijos de boca), só isso. Amanhã nos encontramos de novo, ou não, e aí sim pensamos no que fazer.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Dantes em mim

Era uma carta mas também era um sonho. E pelo que me lembro começava assim:

"Essa última noite tive que descer ao inferno. Fui avisado através de uma mensagem de texto que dizia que um certo anjo de asas escuras, sob a falsa alcunha de alfaiate, havia costurado juntas duas almas distintas, uma escarlate e outra cheia de pontas, numa bolsa de couro ordinário, do tipo que se compra nas feiras mais miseráveis. E era eu quem devia descer até lá, no abismo dos abismos, para por um fim àquela injustiça. Você, entretanto, não queria que eu fosse; me ligou de um orelhão¹ da rua e se usou de todas as chantagens melodramáticas de que dispunha para me tentar me demover dessa idéia absurda. Argumentei dizendo-lhe que o crochê de almas anacrônicas era um costume por demais funesto, e que o caso deveria ser averiguado o mais breve possível.

"Pois que afinal desci. Uma vez na cena do crime, pude ver de perto o estrago: os arremates da bolsa eram grosseiros e a linha, preta. Precisava levá-la comigo a todo custo. Mas as almas eram vagamente arredondadas e, por sorte, foi precisamente este fato que pesou ao meu favor quando entrei numa discussão acalorada com o senhor das profundezas, que por sinal não possuía chifres, fogo pelo corpo ou sequer um rabo pontudo do qual eu pudesse zombar. Me senti subitamente ultrajado pela idéia de estabelecer diálogo com um diabo que não fosse diabólico, e por isso dei-lhe as costas e abandonei-o falando sozinho, como que derrotado. Mas em segredo levava as almas comigo, no bolso da frente da calça, já que o de trás estava com um rasgo tremendo.

"Como o caminho que usei para descer, fosse qual fosse, a essa hora já deveria estar intransitável, decidi que o melhor a fazer era fugir clandestinamente na barca de Caronte, mas não sem antes oferecer-lhe um generoso suborno. Não senti remorso, pois já supunha que nos domínios do inferno nem mesmo o Barqueiro se salvaria da corrupção.

"Uma vez de volta, tratei de cuidar das pobres almas, cujo estado ainda era lastimável, mas não de todo. Já tinha visto coisas piores nessa vida, e sabia que um pouco de carinho e água oxigenada (mas não mercúrio) proporcionariam alguma melhora dentro de poucos dias.

"Já nas primeiras horas da manhã, quando por fim consegui deixar a UTI e voltar para casa, encontrei acesas as luzes da sala. Era você quem, ainda acordada, me aguardava envolta num roupão e tomando um chá já quase frio. E foi sem me dirigir qualquer palavra, ou mesmo qualquer repreensão, que veio até mim e me deu um beijo demorado na boca, repleto de lascívia e preocupação. Desfiz todos os seus temores e correspondi ao seu desejo, que a essa altura era nosso desejo: elogiei-lhe com docilidade e umas poucas palavras obscenas, uma habilidade que você sempre julgou atraente; e alguns minutos depois já lhe possuía a carne e o espírito, com o devido ardor, apesar do cansaço. Foi só quando já estávamos deitados e abraçados e medicados pelo cansaço que resolvi contar-lhe o que havia se passado no inferno, mais cedo, obviamente enfeitando algumas passagens, a fim de que estas não lhe parecessem demasiadamente prosaicas.

"E no rádio, Chris Martin quase lamentava: for you I bleed myself dry..."



1: deduzi isso pelo som dos carros passando.