terça-feira, 30 de março de 2010

Estupidez de Arlequim

As exigências da sua dança
acorrentaram-me enfim,
forçando-me uma aliança
de um rubro carmesim.
Mas finda a nossa transa,
pensei numa besteira assim:
pesa o que sinto contigo,
não a pena que tem de mim.

E sobretudo o que me lança
é essa estupidez de Arlequim,
pois na Itália ou na França,
meu destino é um triste fim:
que por espada ou por lança
não morrerei espadachim
mas, traído numa dança,
ver-te-ei rindo de mim.

sábado, 20 de março de 2010

Rock irlandês pra me libertar


Não tinha nada pra dar certo, a não ser pela unânime promessa de que o espetáculo seria, de fato, um espetáculo.

Me espremi pelo congestionamento humano, abrindo caminho por entre vulgaridades gratuitas e outras nem tanto, entre rostos mais jovens e outros nem tanto, entre all stars puídos e outros nem tanto (o meu era puído, além de verde; ora, era Saint Patrick's Day!).

Esperamos. Na verdade, quase morremos de esperar. Mas o show começou, afinal.

Whisky in a Jar. Música, Piratas e Rum. Shipping Up to Boston. Cuitelinho(?!). Eruption! Dueling Banjos... meu, Dueling Banjos! Música celta com ritmo de baião, e acordeon, e flauta, e violino, e banjo, e guitarra, e bateria, e rabeca, e... e... doidera! Simplesmente sensacional.

Pausa de quinze minutos, tanto pra banda quanto pro meu pula-pula incessante e desatinado. Lá fora, no curral dos fumantes, ganhei um cigarro dum tal de Samuel (ou algo assim), que era um

- Baterista.

- Hmm. De qual banda?

- Da que tá tocando aqui hoje.

Naaaahhh! Muito, muito gente boa esse Samuel (ou algo assim) - que além de músico era também vagabundo por talento, mochileiro por profissão e bom de papo por prática, eu presumo. Ele me contou como era ter uma banda e ver as pessoas do palco, como era fazer música e, por isso mesmo, se divertir mais do que o próprio público. E pela primeira vez me dei conta de que, céus, como eu queria ter uma banda...

Recomeçou a ópera. Músicas ainda mais fantásticas, dancinhas ainda mais bacanas e meu pula-pula ainda mais ensandecido. O vocalista tocou uma gaita de fole - uma gaita de fole! -, que é indiscutivelmente o mais formidável entre os instrumentos formidáveis do mundo.

E por fim, coroando o fim do show com o autêntico espírito festivo dos celtas, uma garota da platéia demonstrou invejável perícia ao manejar e quebrar, no nariz de outra garota, uma nada civilizada garrafa de cerveja - e isso sabe-se deus por quê. Só me dei pelo acontecido quando alguém, em profundo desespero, apontou para o meu braço e exclamou "jesus cristo, olha todo esse sangue!". Felizmente, não era meu sangue. Infelizmente, sujou meu all star todo.

É portanto com alegria que afirmo: por uma noite, eu fui irlandês.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Killing lies¹

Até hoje, nada a tinha assustado...

Ela não havia acordado cedo nem cumprido suas próprias metas; passara o dia boiando à deriva, prostrada por si, proscrita em si, afogando-se numa maré agradável de memórias mornas. Segundo Virginia Woolf, ela mergulhara como que por completo num clima crepuscular de afáveis reminiscências.

Até hoje, nada a tinha assustado tanto quanto a...

Pensar enlouquece, e ela pensa nisso. Pensa tanto que, tomada por um acesso sufocante de remorso, retoma rapidamente todas as suas obrigações e afazeres, escaldando a própria depressão numa sucessão de xícaras quentes e transbordantes de café espresso².

Até hoje, nada a tinha assustado tanto quanto a inequivocável sensação de que...

A paixão é justificada, seja isso efêmero ou perpétuo. Pois ela se mortifica ao vê-lo caminhando na sua direção, semblante sorridente, vindo (desinteressado) beijá-la e abraçá-la como se não houvessem, ainda ontem, compartilhado o sono etílico dos boêmios.

Até hoje, nada a tinha assustado tanto quanto a inequivocável sensação de que dormira nos braços dele a noite mais ímpar (de todas as muitas e muitas noites que fizeram parte) de sua vida.



¹: sim, o título é (outra...) música do The Strokes.
²: para o meu total desespero, é com "s" mesmo.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Amoras partidas

São as sapatilhas finas de um tecido escuro que deslizam leves pelo salão, aceitando com presteza todos os movimentos que partem da minha dança. Não são os olhos que me impressionam, nem a boca de amoras firmes, nem os cabelos macios; não. Assim fosse, mais fácil seria conter dentro de mim essa atração perfumada da carne. O que de fato me impressiona é a leveza do seu corpo jovem, sempre seguida de gracejos e sorrisos cobiçosos (cobiça sensual e infantil, transcendental; uma cobiça do tipo que não se vê no rosto dos mortais).

Perco as rédeas dos meus passos e, após um giro breve, sinto seu corpo quente colado ao meu, suado, num abraço apertado. Meu desejo timidamente implora: quero que me sinta como eu te sinto, cinto em volta da cintura, desafivelado, palpitante. Mas é você quem, curiosamente, beija minha boca exatamente como eu te beijaria, de corpo inteiro, totalmente às avessas do machismo barato que se ensina nos livros e nas escolas; e tudo quanto há em mim, carne e sentidos, é dominado com opulência pelos contornos finos de sua orquestra de lábios, saliva e respiração.

Prometo que não faremos amor, pelo menos não hoje, e uma parte sombria de você se derrete ante a possibilidade de estar diante não de um animal no cio, mas de um homem que finalmente fosse capaz de respeitar e contornar seus assustadores abismos de feminilidade – isto é, alguém que pudesse depreender de você o que nem você nem ninguém haviam conseguido até hoje. Mas tal derretimento é fugaz e, cobrindo-se novamente no íntimo com recentes pessimismos, você se despede (e me despede) com um beijo menos empolgado do que o esperado, meio cruel, alegando que a hora é avançada e que o sol já nasce no horizonte.

E, coincidência ou não, é a voz agradavelmente cavernosa de Julian Casablancas que sai dos alto-falantes do carro, explicando na volta pra casa:


Razor blade, that's what I call love:
I bet you pick it up and mess around with it
If I put it down
It gets extremely complicated
Anything to forget everything…





PS: A dor de estômago (não deveria, mas) me põe mais romântico. Irônico, não?