terça-feira, 20 de outubro de 2009

A ímpar cissiparidade de Cissa

(Nota: Demorou, mas saiu. E vale dizer - não sem certa vaidade - que o texto conta com a aprovação da dona do nome e do sobrenome mais fantásticos de que tenho conhecimento.

Bom, aí vai.)

Sem mais nem menos, numa dessas manhãs opressivas das terças-feiras, Bruno resolvera colecionar selos. Gabriela, por sua vez, optara pela coleção de livros (daqueles que não tivessem figuras). Mas não na mesma manhã, é claro. Isso foi numa tarde de sábado, das melancólicas.

"Colecionar livros é bem mais razoável do que colecionar selos", era o que Gabriela pensava. Ainda que não conhecesse Bruno, é claro.

Mas bem, esta infelizmente não é uma estória sobre Gabriela. E, muito embora Bruno tenha sido mencionado logo de início, temo em dizer que esta estória também não é sobre ele.

Esta é uma estória sobre Cissa, e sobre seu gosto por demais peculiar para coleções.

Cissa colecionava pessoas que não faziam mais parte de sua vida. E era só isso.

Pessoas que tinham partido ou se mudado, fosse por morte ou por trabalho; pessoas que tinham ido estudar fora, e que não voltaram até agora; pessoas que tinham um jeito legal, e outras um tanto sem sal; pessoas que tinham apelidos, que tinham nome, que tinham vidas inteiras.

Todas, todas elas, em uníssona totalidade, haviam de algum modo (inevitável?) deixado de participar das partiduras musicais de Cissa. Uma a uma, e às vezes em grupos inteiros, desprendiam-se como notas finas e desafinadas, perdidas nos ecos ensurdecedores do mundo. Passavam, então, a fazer parte somente de sua ímpar e lúgubre coleção. E é por muitas e muitas vezes - pra não dizer sempre - que Cissa caminha lentamente por entre os artigos em seus mostruários, revivendo cada pessoa, cada cheiro, cada chá e cada choro.

Somente Cissa sabe como Cissa se sente diante de tantas e tantas cissiparidades de si. Há um pouco de Cissa em cada uma dessas pessoas, mas sempre haverá uma porção significativamente maior dessas pessoas em Cissa. Sua coleção, à sua maneira, define quem ela realmente é na mesma medida em que a palha faz o espantalho: é o seu recheio, seu real conteúdo por trás de tudo.

Longe dali, entretanto, Bruno e Gabriela prosseguiam normalmente com suas vidas, cada um com sua própria coleção.

Ainda que não se conhecessem, é claro.

3 comentários:

Felipe Fidalgo disse...

Eu espero ser um item de sua coleção de pessoas que (inevitavelmente?)não deve sair da prateleira com cheiro e teor de uma amizade cissípar!

Até que enfim encontrei alguém que sofre do mesmo mal que eu: escrever!

Maravilhoso blog. Ganhou, com certeza, inevitavelmente(gostei dessa palavara, principalmente como uma indagação) um assiduo leitor.

Escreverei um ensaio novo inspirado na Cissa, se me permite.

Cissa disse...

eu queria poder fazer melhor. pegar todas essas pessoas e guardar antes delas irem embora.
mas às vezes não é a gente que escolhe a coleção que dá pra fazer.

obrigada pelo texto, dono moço.

Lucero disse...

Me encanta tu blog =)
me gusta mucho como escribes


extraño poder hablar contigo...
besos