quarta-feira, 3 de março de 2010

Amoras partidas

São as sapatilhas finas de um tecido escuro que deslizam leves pelo salão, aceitando com presteza todos os movimentos que partem da minha dança. Não são os olhos que me impressionam, nem a boca de amoras firmes, nem os cabelos macios; não. Assim fosse, mais fácil seria conter dentro de mim essa atração perfumada da carne. O que de fato me impressiona é a leveza do seu corpo jovem, sempre seguida de gracejos e sorrisos cobiçosos (cobiça sensual e infantil, transcendental; uma cobiça do tipo que não se vê no rosto dos mortais).

Perco as rédeas dos meus passos e, após um giro breve, sinto seu corpo quente colado ao meu, suado, num abraço apertado. Meu desejo timidamente implora: quero que me sinta como eu te sinto, cinto em volta da cintura, desafivelado, palpitante. Mas é você quem, curiosamente, beija minha boca exatamente como eu te beijaria, de corpo inteiro, totalmente às avessas do machismo barato que se ensina nos livros e nas escolas; e tudo quanto há em mim, carne e sentidos, é dominado com opulência pelos contornos finos de sua orquestra de lábios, saliva e respiração.

Prometo que não faremos amor, pelo menos não hoje, e uma parte sombria de você se derrete ante a possibilidade de estar diante não de um animal no cio, mas de um homem que finalmente fosse capaz de respeitar e contornar seus assustadores abismos de feminilidade – isto é, alguém que pudesse depreender de você o que nem você nem ninguém haviam conseguido até hoje. Mas tal derretimento é fugaz e, cobrindo-se novamente no íntimo com recentes pessimismos, você se despede (e me despede) com um beijo menos empolgado do que o esperado, meio cruel, alegando que a hora é avançada e que o sol já nasce no horizonte.

E, coincidência ou não, é a voz agradavelmente cavernosa de Julian Casablancas que sai dos alto-falantes do carro, explicando na volta pra casa:


Razor blade, that's what I call love:
I bet you pick it up and mess around with it
If I put it down
It gets extremely complicated
Anything to forget everything…





PS: A dor de estômago (não deveria, mas) me põe mais romântico. Irônico, não?

Um comentário:

Anônimo disse...

Não é um texto chato e terrivelmente bobo... pelo contrário! Gostei muito...